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Hoje um conto...



A VIDA DO HOMEM
Xavier Marques (1861-1942)
- Deus criou o homem - começa o narrador - e disse-lhe
- Vai, serás o senhor da terra e o animal superior. Grandes trabalhos e surpresas te esperam, mas de tudo triunfarás, se fizeres a tua parte. A tua felicidade muito depende do teu querer Viverás trinta anos.
O homem ouviu e calou-se.
Deus criou o burro e disse-lhe:
- Vais viver como escravo do homem, conduzi-lo a ele e a todos os fardos que te puser às costas. Serás bastante discreto e  paciente para suportar, além da pesada carga, as privações que te forem impostas durante as viagens. Viverás cinqüenta anos.
O burro meditou e respondeu:
- Escravidão, cargas, privações, e viver cinqüenta anos. É muito Senhor, bastam-me trinta.

Deus criou o cão e disse-lhe:
- Vais ser o companheiro do homem, de quem guardarás, sempre alerta, a porta, servindo com inteira obediência, ainda que não receberás mais do que um osso para matar a fome. Sofrerás açoites, mas humilde e fiel, tens que lamber a mão que te castiga. Viverás trinta anos.
O cão pensou e refugou:
- Vigiar dia e noite, ser açoitado, padecer fome e viver trinta anos. Não Senhor, quero apenas dez.

Deus criou o macaco e disse-lhe:
- Vai, teu ofício é alegrar o homem. Saltando de galho em galho, ou atado a um cepo, procurarás, imitando-lhe os gestos, arremedando-o, fazendo esgares, dissipar-lhe a tristeza e entreter-lhe o humor. Viverás cinqüenta anos.
O Macaco pestanejou e pediu:
-Senhor, é demasiado para tão ingrato mister - basta-me trinta anos.

Tomando, então, a palavra, disse o homem:
- Vinte anos que o burro não quis, vinte que o cão enjeitou, vinte que o macaco recusa, dai-mos Senhor, que trinta anos são muito pouco para o rei dos animais.
-Toma-os - acedeu o Criador. - Viverás os noventa anos, mas com uma condição - cumprirás, em tua vida, não só o teu destino, mas também o do burro, o do cão e o do macaco.
E assim vive o homem.
Até aos trinta, forte corajoso, resistente, arrosta os perigos e estorvos. Luta com resolução, vence e domina. É homem.
Dos trinta aos cinqüenta, tem família, e trabalha, sem repouso, para sustentá-la. Cria os filhos, afadiga-se por educá-los e garantir-lhes o futuro. Sobre ele se acumulam os encargos. É burro.
Dos cinqüenta aos setenta, está de sentinela à família. Dedicado e dócil, seu dever é defende-la, mas já não pode, contudo, fazer valer a sua vontade. Contrariado, humilha-se e obedece. É cão.
Dos setenta aos noventa, sem forças, curvo, trôpego, enrugado, vegeta a um canto, inútil e ridículo. Faz rir com sua gula, sua caduquice e a sua própria rabugem. Sabe que o não tomam a sério, mas resigna-se e tem gosto em ser o palhaço das crianças. É macaco.






Sobre Xavier Marques
Segundo ocupante da Cadeira 28, eleito em 24 de julho de 1919, na sucessão de Inglês de Sousa e recebido pelo Acadêmico Goulart de Andrade em 17 de setembro de 1920.
Xavier Marques (Francisco X. Ferreira M.), jornalista, político, romancista, poeta e ensaísta, nasceu na ilha de Itaparica, BA, em 3 de dezembro de 1861, e faleceu em Salvador, BA, em 30 de outubro de 1942.
Iniciou os primeiros estudos em sua cidade natal. Cedo se transferiu para a cidade de Salvador, matriculando-se no colégio do cônego Francisco Bernardino de Sousa. Na capital baiana dedicou-se ao jornalismo, atividade que só interrompeu durante o segundo dos seus dois mandatos legislativos: deputado estadual na Bahia, de 1915 a 1921, e federal, de 1921 a 1924.
Havia nele, porém, mais do que um jornalista. Ao mesmo tempo que escrevia seus artigos, ia criando romances. Ao romance de estréia Boto e companhia (1897), seguiu-se a novela Jana e Joel (1899), considerada a sua melhor obra. Sua ficção é das mais representativas na área regionalista e praieira baiana, a cujos valores permaneceu sempre fiel. Publicou também volumes de poesia, de linguagem parnasiana, coletâneas de contos e ensaios. Alcançou vários prêmios literários em sua longa vida de escritor, entre os quais um prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1910, pelo romance Sargento Pedro. Gozou sempre de grande prestígio na Bahia, onde vivia como um patriarca literário, cercado de consideração, respeito e amor de todos.

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