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Daniel Pizza e o Jornalismo Cultural...

O jornalismo cultural vive um paradoxo na atualidade: por um lado, ficou mais importante porque os temas que aborda cresceram no cotidiano das pessoas e porque é um meio com poucos equivalentes para transformar informação em formação, algo do qual a sociedade anda mais e mais carente; por outro, embora atraia interesse cada vez maior de estudantes e leitores, caiu muito de nível, incapaz de resistir à maquinaria dos entretenimentos e ao culto das celebridades, e parece se recusar a qualquer abordagem mais pensante. O jornalismo cultural chega a muito mais pessoas que a literatura, mas infelizmente isso o tem levado a ser menos e não mais educativo.
Por isso achei muito bom que o cineasta alemão Werner Herzog tenha aberto, na terça passada, o 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, evento da revista Cult no Sesc Vila Mariana, se queixando da falta de críticos de cinema. Ao contrário do que tanta gente pensa, a arte sai perdendo muito quando não há um clima de debate fomentado pela crítica séria, escrita por profissionais que saibam fundamentar opiniões em conhecimento de história e técnica e numa linguagem cristalina e atraente. Herzog também não suporta esse mundo People que não para de aumentar, onde aparência e sucesso valem mais que consistência e originalidade, onde a tal “atitude” pesa mais que o talento.
Participei do congresso na quarta, numa mesa redonda sobre crítica literária, e comentei que esse é um problema que vem se acentuando desde os anos 90, quando a alegação de que o tal “leitor médio” não está interessado em ler opiniões elaboradas reduziu o espaço e o status dos críticos. As resenhas foram ganhando o tom de resumos adjetivados e as reportagens destacando o artista como personagem, com a obra em terceiro plano. Essa superficialidade e esse personalismo são o contrário do que sempre pregaram e praticaram os críticos que todo mundo, eu inclusive, cita nessas situações nostálgicas, como Otto Maria Carpeaux ou, para lembrar um mais esquecido, Álvaro Lins. Eles falavam ao público em geral de modo acessível, mas sem concessões.
Nesse aspecto, porém, o chororô corporativista esquece de se perguntar se a crítica não colaborou com seu próprio amesquinhamento. A meu ver, sim, e por dois motivos. Primeiro, muitas vezes a entregou aos professores universitários, que supostamente tratariam melhor de assuntos de maior profundidade; em troca, na grande maioria dos casos, recebeu textos chatos, seja por excesso de jargões, seja por falta de coragem. A figura do intelectual público, já rara entre nós, escasseou ainda mais. Mesmo alguns que tentam ser mais contundentes lidam com o gênero como se fosse um formulário de requisitos (leia-se: preconceitos) aos quais o trabalho que resenham deve atender. Se o público tem preconceito de conteúdo (não gosta de um tema ou arte, não gosta de finais tristes, etc.), a academia o tem de forma: só aceita frases longas, gêneros delimitados, notas de rodapé, etc.
O segundo motivo, muitas vezes coincidente com o primeiro, em especial numa cultura como a brasileira, é a conversão da crítica numa espécie de ferramenta política. Se alguém reclama de um crítico “respeitado” que diga, por exemplo, que Josué Montello era o maior romancista brasileiro do período, pode se preparar que o troco vem, cedo ou tarde, na forma mais baixa. Apontar lapsos e colar rótulos toma o lugar da análise honesta, aquela que não confunde obra e autor. Patotas são formadas, e entre elas só pode haver elogios; para os que não pertencem a elas, só pode haver ataques, ao melhor estilo casca grossa. Vemos muitos jornalistas praticando essa modalidade “vedete”, maledicente, que não raro disfarça a inveja pessoal ou a discordância ideológica. Se fulano é considerado “de direita” e ele se considera “de esquerda”, qualquer argumento técnico é banido. Isso para não falar do resenhista que nem sequer lê.
Muita gente boa acha, por contraste, que a crítica não deveria “falar mal”; ou seja, se o profissional não gosta de uma determinada obra, não escreva nada sobre ela; se não puder fugir ao compromisso, faça apenas uma ressalva aqui e ali, em meio a um texto de tom “neutro”. Bem, já escrevi centenas de resenhas e comentários de livros e, na grande maioria (80%, digamos), era para estimular o leitor a lê-lo, com maior dosagem de elogios do que objeções. Mas é um erro não ver que uma das principais funções da crítica, ainda mais hoje em dia, é não aderir a modismos, é contestar o gosto da maioria; é não se deixar levar nem por fenômenos de mercado, que quase sempre são fugazes, nem por nomes consagrados, que muitas vezes são mais bajulados por suas piores obras. Isso não é “ser do contra”. E exige uma resistência cada vez mais difícil de encontrar nestes tempos de populismo cultural.
Depois participei de um programa da TV do Sesc com Lorena Calábria, que tratou de parte dos assuntos acima. Ela fez, entre outras, uma pergunta ótima – que tem a ver com essa necessidade de autocrítica da profissão – sobre a diferença entre gostar de ler e ter pensamento crítico. A mim, por exemplo, não me interessa o crítico que leu tudo e não leu a vida. Há grandes romances sobre a doença livresca, como Auto de Fé, de Elias Canetti, e conheço muitas pessoas que leram bastante, inclusive os clássicos, e têm a sensibilidade de uma traça, pois não pensam com cabeça própria. O único modo de renovar a crítica e, quem sabe, deixá-la mais sedutora para um público tão dispersivo, tão submetido às propagandas e frivolidades, é mostrando que ideias e artes se entrelaçam com atos e fatos – que a tradição não é para seguir ou romper, mas uma rica e divertida história de discussões e sensações, um vibrante congresso de confrontos. É tolice achar que bibliotecas são silenciosas.
(“Sinopse”)

Comentários

  1. Oi, Sarah! Venho pra endossar o que você está dizendo e com força, moça. Há quem leia tudo e não saiba nada da vida. Eu, por exemplo, sou um tabaréu de pés rachados no chão e já escrevi mais de 300 textos sobre minhas vivências [sorrio]

    Abraço do blogueiro Jefhcardoso

    “Que a escrita me sirva como arma contra o silêncio em vida, pois terei a morte inteira para silenciar um dia” (Jefhcardoso)

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  2. Oi Jefh, este texto é do Pizza, quis replica-lo, vou colocar melhor a fonte pra esclarecer, mas sobre seu comentário. E há quem não pratique muito a leitura e tem mta vivência...a vida sempre tem dessas né...sempre tem um caminho do meio!

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